domingo, 29 de julho de 2018

Voando para um Sonho


            Capitão Ícaro¹ estava pronto para mais um voo, dessa vez sobrevoaria a cidade maravilhosa, acompanhado de seu inseparável amigo Ben.  Tirou, pela centésima vez, a foto de Eleonor² do bolso e sorriu para ela.
—Ela é linda, não é mesmo Ben? — Disse desejando estar nos braços da jovem. — É a mulher mais bonita que conheço e, certamente a que mais amo.  Adoro seu carinho e dedicação. Adoro o jeito que sempre me recebe com um delicioso bolo de cenoura e um abraço.
            Ao notar que o amigo mostrava sua lustrosa fileira de dentes, também riu do seu próprio sentimentalismo e guardou a fotografia, amassando-a no bolso de trás. Deu mais uma olhada nas pás do aeromotor e, por fim, preparou-se para o voo.  Quando Ben e Ícaro já estavam acomodados, ouviu-se o barulho do motor. O ruído que aumentava mais e mais era como música para os ouvidos do piloto.
—Tudo certo ai, amigão? — Perguntou ele a Ben, que apenas balançou a cabeça em sinal de confirmação. Ben era um baixinho mal encarado e de poucas palavras. Muitos o achavam antipático, outros pensavam que ele era mudo, tamanha a raridade que o silencioso parceiro emitia ruídos.
            Após a confirmação de seu amigo fiel, Ícaro sabia que estava na hora.  Mesmo depois de dezenas de voos ele nunca se cansou dessa parte, era sua favorita. Sentia que o avião estava indo cada vez mais rápido. A vibração do contado com o solo percorrendo todo seu corpo. O som ensurdecedor do vento. E então, em menos de um segundo, tudo parava e só se ouvia novamente o barulho do motor. Levantaram voo.
            Não havia mais chão, eles subiam e subiam. Ícaro podia sentir a liberdade tocar sua face. Era como se o mundo parasse, só para que ele pudesse sentir aquilo mais uma vez. Abriu os olhos, fazia poucos segundos que os havia fechado, mas pareciam minutos. Talvez o tempo também parasse para sentir a liberdade. Viu a cidade lá embaixo. Um mar inteiro dela. As curvas doces do pão de açúcar ao fundo. O Cristo saudoso, sempre a espera de um abraço, a frente. Cumprimentou o gigante de pedra-sabão e desejou ser grande o suficiente pra aceitar o abraço que era oferecido a tanto tempo. Ben parecia inquieto, ambos sentiam que havia algo errado.
—Você está ouvindo isso, garoto? — Perguntou. — Parece que estamos encrencados.
•••
­ — Que bagunça é essa, Ícaro? — Resmungou a velha senhora que entrava pela porta da frente carregada de sacolas.
— Calma vovó Elê! Eu já estava arrumando. — Disse levantando-se bruscamente, ele estava realmente encrencado.
— Tira esse cachorro de cima das minhas almofadas, ele vai encher tudo de pelos!
— Sim, senhora! — A essa altura o velho Pug já saia de fininho percebendo a bronca e o garoto recolhia as almofadas do chão.
— Covarde. — Cochichou o garoto sobre o cãozinho, enquanto ele tentava fugir dos olhos atentos da senhora.
— Eu achei o chá que combinará perfeitamente com o bolo. Ande, vá lavar as mãos. Vou te servir uma grande fatia, bem do jeito que você gosta.
            O garoto desligou o ventilador, que estava a frente da pilha de almofadas, fazendo suas hélices pararem. Recolheu os quadros da avó, antes escorados em cadeiras, que formavam a paisagem vista das janelas de seu avião de almofadas. Os velhos quadros eram lembranças da viajem que sua avó fez ao Rio quando jovem, coloco-os cuidadosamente de volta em seus lugares. Deu mais uma bela olhada no Cristo estampado na tela e saiu para lavar as mãos. Antes que chegasse ao banheiro, voltou ao cômodo de visitas e tirou a foto amarrotada do bolso de trás. Colocou-a novamente no porta-retratos marrom, em cima da estante e, guiado pelo inebriante cheiro de bolo de cenoura e calda de chocolate, correu até a cozinha para receber um longo abraço, que tanto espera no fim de cada aventura.

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¹ Na mitologia grega Ícaro, filho de Delano, voou com assas feitas de cera de abelha e penas de gaivota. Porém, por sonhar alto demais, voou em direção Sol. Isso fez a cera de abelha que sustentava suas asas derreter, derrubando-o ao mar.
² Eleonor advém do grego Heléne que significa “tocha”, que por sua vez, veio do termo hélê que quer dizer “raio de sol”.